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Entre lágrimas e esperanças

Thais Valim


Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande no Norte



Era uma tarde de calor na capital potiguar e Neusa observava sua filha caçula, Viviane, dar longas braçadas na piscina com o auxílio de sua treinadora. Aquele era um momento que já fazia parte da rotina semanal da família: todas as segundas e quartas, ela e a filha mais velha acompanhavam Viviane nas aulas de natação da professora Leila, profissional de educação física e treinadora de crianças com deficiência. Naquela tarde, no entanto, ao ver a desenvoltura de sua filha na piscina, a jovem mãe foi lembrando dos desafios e lutas vividos nos últimos anos em busca dos direitos da pequena Viviane. Neusa se lembrou da gestação e do ultrassom que indicou um “probleminha na cabeça”, lembrou das incertezas do diagnóstico da Síndrome Congênita do Vírus da Zika (SCVZ), da desesperança de muitos médicos e familiares com relação ao futuro da filha, das inúmeras, incontáveis sessões de terapia. Uma lágrima tímida escorreu de seus olhos, e Neusa se apressou em impedir que o choro viesse. Mas estava feliz; todo aquele esforço tinha valido a pena, e a alegria de sua filha na piscina era uma valiosa conquista após tanto esforço, dedicação, cuidado, afeto e cansaço – muito cansaço!


Leila continuava auxiliando a pequena Viviane, que utilizava uma boia em cada braço para não afundar. “Vamos, Viviane, vamos usar esses bracinhos!!”, ela incentivava. Devido a espasticidade muscular que muitas das crianças com a SCVZ apresentam, Viviane tinha maior facilidade em movimentar o braço esquerdo do que o direito, e a treinadora procurava orientá-la para utilizar os dois. “Vamos, peixinha, com os dois braços, vamos, sem preguiça!”. Neusa observava a pequena “peixinha” com orgulho, afinal foram três anos e meio de terapia para que a menina conseguisse sustentar o próprio pescoço. Agora já estava até dando braçadas na água.


Neusa se perdeu novamente em seus pensamentos, estava contemplativa naquele dia, algo que a intensa e corrida rotina raramente permitia. A aula chegava ao fim, e, enquanto a filha mais velha, Alessandra, despia a irmã e trocava as roupas molhadas por um conjuntinho vermelho e sequinho, a mãe ia guardando seus apetrechos. Esvaziou a boia, recolheu as roupas molhadas em uma sacola plástica e guardou os óculos de natação. Após a pequena Viviane estar trocada, com as órteses recolocadas nos pés e os óculos de grau na cabeça, a família se sentou à espera do carro da prefeitura que as levaria de volta para casa, a 40km do centro de natação. Aquele era um dia típico na vida de Neusa, acompanhando a filha nas terapias e na natação. O dia era igual, mas Neusa estava diferente: apesar das dificuldades, ela sentia esperança ao pensar no futuro de sua filha Viviane.


Ao chegar em casa, decidiu que o dia merecia um delicioso bolo de chocolate. Separou os ingredientes e, enquanto batia a massa, ouvia no noticiário as últimas novidades sobre a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus e que vinha ocupando manchetes desde o fim de 2019, quando estava ainda restrita à China. Contudo, desde fevereiro de 2020 já havia casos confirmados no Brasil. Naquele dia, o noticiário informava sobre a declaração de emergência mundial anunciada pela Organização Mundial da Saúde, atualizando o status da disseminação do vírus como uma pandemia. Neusa, mulher de fé, rezou para que o Brasil não fosse tão afetado pela doença. Ela sabia, afinal, dos custos sociais e emocionais de uma epidemia. Mudou de canal e colocou o bolo no forno, estaria quentinho quando o marido chegasse do trabalho. A família lanchou e foram descansar para um novo dia.


Nas semanas seguintes, a disseminação do vírus pelo Brasil começou a preocupar médicos, epidemiologistas e uma grande parcela da população. Também nas terapias de estimulação precoce, nos consultórios e em outros espaços do cotidiano de Neusa e sua filha, a questão do vírus foi se tornando cada vez mais relevante. Boatos sobre a necessidade de uma quarentena também se espalhavam. Neusa se preocupava. “E se Viviane ficar sem as terapias? O que acontecerá?”, pensava a mãe.

A doença continuou progredindo no Rio Grande do Norte, e os boatos tornaram-se realidade. Ao final do mês de março já estavam suspensos os atendimentos presenciais de todas as terapias de estimulação precoce das crianças. O distanciamento social cortou a pouca interação que Neusa tinha com outras mulheres nas conversas e fofocas que trocavam durante a espera pelos serviços de saúde. A corrida entre terapias, consultórios, ONGs, audiências públicas e natação virou uma corrida dentro do lar. Com os três filhos em casa devido à suspensão das aulas, a rotina doméstica se intensificou. O marido continuou trabalhando fora, mas o receio de contaminar alguém da família tornou a convivência distante. Além da solidão, da ansiedade e da sobrecarga, Neusa também passou a se preocupar com uma possível regressão de Viviane. Crianças, em eventos traumáticos ou em uma mudança repentina de rotina, podem apresentar sinais de regressão e voltarem a comportamentos anteriores. No caso de crianças com deficiência, esse receio da regressão aumenta, já que as terapias e o contato social provindo delas são fortes estimulantes para o desenvolvimento.


Embora alguns centros de saúde tenham procurado se adaptar ao contexto oferecendo teleatendimento, os espaços onde Viviane fazia suas terapias não promoveram o atendimento virtual. A família procura estimular a filha em casa, reproduzindo os movimentos que foram aprendidos ao longo de tantos anos, mas, depois de três meses sem assistência especializada, Neusa já nota mudanças no quadro geral da filha. Ela observa a pequena tentando sustentar o pescoço com mais dificuldade. As pernas, que já a sustentavam em pequenas, porém, impetuosas passadas, vêm amolecendo. Com a dificuldade, Viviane está voltando a ter preferência por engatinhar e se arrastar no chão. A incontinência urinária também piorou, e, com os constantes vazamentos, Neusa também precisa trocar as fraldas com mais frequência, com medo do acúmulo do xixi resultar em alguma assadura ou infecção que possam levar a menina ao médico, o que aperta ainda mais o orçamento doméstico, já que as fraldas são caras e não reutilizáveis. Embora crianças não estejam enquadradas no que se entende como “grupo de risco” da doença, crianças com deficiência não dispõem da mesma segurança, então a estratégia de Neusa é a de evitar a todo custo qualquer tipo de contato da filha com o mundo externo.


Enquanto prepara o almoço da família, Neusa observa a filha mais velha brincar com os irmãos mais novos. Alessandra estimula Viviane, cumpre um pouco do papel de fisioterapeuta que não pode ser ocupado por profissionais no momento. Viviane levanta o pescoço, perde a força, pende o corpo para frente. Neusa agradece por sua família, por estarem seguros e em casa, mas se pergunta quanto essa pandemia irá custar em termos de desenvolvimento da filha. “Foram tantas lutas, tanto preconceito pra chegar até aqui”, ela pensa, pesarosa, “é como se tudo fosse em vão”. Ela quer chorar, mas se segura para não preocupar a mais velha. Fecha os olhos e novamente as lembranças lhe invadem o pensamento: a primeira palavra balbuciada, a descoberta do gosto da caçula por música, a primeira passada vacilante, a primeira aula de natação. As memórias lhe trazem algum alento. “Se a gente conseguiu uma vez, conseguimos de novo”, ela pensa, entre lágrimas e esperanças, enquanto rememora a trajetória da família até aqui.


Publicado originalmente na Rede Covid-19 Humanidades

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