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“Saúde em primeiro lugar”: dificuldades enfrentadas pelas famílias de micro antes e durante a pandem

Júlia Vilela Garcia


Mestranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília



Andar de ônibus pela Grande Recife não é uma tarefa fácil. As ruas esburacadas, o chacoalhar do transporte, a demora para o veículo chegar, o calor escaldante de Pernambuco e as longas distâncias entre um ponto e outro cansam todos aqueles que dependem do transporte público precário e superlotado para se locomover pela cidade. Dona Zefa e sua filha Janaína que o digam. Sem acesso a um carro próprio e com a renda apertada demais para pagar por transportes alternativos como Uber ou Táxi, mãe e filha se revezam nos ônibus recifenses para levar Rafinha, filho de Janaína e que possui Síndrome Congênita do Vírus Zika, para as terapias diárias nas clínicas e hospitais da cidade.


Rafinha é uma criança grande, gorducha e de temperamento agradável. O menino, atualmente com cinco anos, é calminho e sorridente, mas custou a conseguir acesso às terapias. O que era recomendado como estimulação precoce para os bebês de micro[1], como ficaram conhecidos, só chegou até Rafinha quando ele já tinha quase dois anos de idade, no ano de 2016. Com infelicidade, pouco tempo depois, Dona Zefa, sua avó, começou a notar que o neto estava com problemas respiratórios como baixa saturação de oxigênio no sangue, o que demandava ora uma nebulização, ora uma ida ao hospital decorrente das crises de pneumonia causadas pela broncoaspiração.


Entretanto, o que era motivo de mais movimentação e circulação pelas diferentes terapias nas clínicas e hospitais da cidade preocupou Dona Zefa. O choque térmico do ônibus quente com o ar condicionado das clínicas geladas deixavam seu netinho com dificuldades ainda maiores de respirar e, segundo ela, a superlotação dos ônibus deixavam a criança ainda mais sem ar, pois o menino tinha que competir por oxigênio com os demais passageiros, ficando com a boca branquinha, pálido, com enjoo. Para Zefa, Janaína e Rafinha não estava valendo a pena pegar horas de transporte público com o menino passando mal para realizar apenas 20 minutos de terapia diária – o tempo que era disponibilizado para cada criança de micro nas clínicas de Recife.


A dificuldade de locomoção e a frágil saúde de Rafinha fizeram com que Dona Zefa e Janaína tomassem algumas decisões. Primeiro, começaram a escolher as terapias nos locais em que a prefeitura disponibilizava transporte especial para que Rafinha não precisasse competir por oxigênio com muitos passageiros. Optaram também por instituições em que as terapias possuíam um tempo maior. Juntaram a família para cobrir um planinho de saúde para as emergências. Tudo para que a criança tivesse uma boa qualidade de vida, se estressasse o menos possível, respirasse e vivesse melhor. “Transporte é importante, mas saúde em primeiro lugar. Tem que ter mais facilidade com as coisas. É preciso que os bebês de micro sejam prioridade”, reforçava Dona Zefa com carinho e preocupação.


Era nítido que a saúde de Rafinha era prioridade para a sua família, mas às vezes não parecia ser prioridade para o sistema de saúde. Não foram poucos os relatos de Dona Zefa e Janaína sobre o descaso dos hospitais com Rafinha. “A mídia mostra o dinheiro entrando, mas as pessoas que utilizam não veem melhora nos serviços. Se para a terapia ele atrofia. Para onde vão os recursos?”, ponderavam. O pai de Rafinha, Pedro Lucas, certa vez precisou brigar, xingar e até falar palavrões no hospital para que o filho fosse atendido. A família fazia o que podia, batalhavam por atendimento, escolhiam o que acreditavam ser a melhor opção para a criança, aprendiam e repetiam exercícios de estimulação em casa, e, por mais que alguns deles só pudessem ser executados pelos profissionais, davam tudo de si para que o menino evoluísse, se desenvolvesse, se tornasse mais independente. As reclamações, as demandas e os esforços de Janaína e Dona Zefa não se restringiram apenas aos anos iniciais de Rafael e tampouco eram comportamentos exclusivos daquela família. Muitas outras mães concordavam, faziam coro às falas dessas duas mulheres, somavam esforços nas denúncias e nos protestos por melhor atendimento.


Os esforços da família de Rafinha, as escolhas, as reclamações, as exigências de o menino ser visto como prioridade no sistema de saúde – devido às consequências causadas em sua vida pela epidemia do Vírus Zika em 2015 – foram abruptamente interpelados por uma nova pandemia. No início de 2020, o Covid-19 rapidamente se espalhou planeta a fora e exigiu de imediato os esforços do corpo médico. Profissionais de saúde se uniram e voltaram-se para o tratamento da imensa quantidade de pessoas contaminadas pelo novo vírus, por vezes, mortal. Alguns médicos e terapeutas foram dispensados das clínicas de reabilitação que estas crianças costumavam frequentar, talvez para serem realocados em outros serviços de atendimento ao Covid-19 ou mesmo porque se tornou impossível mantê-los no quadro. Depois os serviços terapêuticos foram todos encerrados por causa do distanciamento social e as famílias de micro foram, aos poucos, sendo esquecidas, negligenciadas, silenciadas.


Dona Zefa e Janaína começaram a ver que Rafinha estava gripando com mais facilidade, ficando mais molinho, esquecendo alguns aprendizados. Outras mães perceberam o mesmo devido à interrupção das terapias, um serviço vital para essas famílias, mas que sequer foi considerado essencial para as autoridades. Janaína comentou que uma das instituições até tinha retomado algumas terapias, mas de que adiantava se o transporte da prefeitura, que levava a família até a clínica, não havia retomado sua atividade? “Da minha casa para a terapia são dois ônibus”, reforçou a mãe de Rafinha, lembrando que desde os dois anos de idade a criança já sofria as consequências do transporte público precário, da competição por oxigênio que o deixava pálido e nauseado. Se naquela época já era difícil para o menino seguir para as clínicas e hospitais da cidade, agora, maior, mais velho, mas ainda molinho e constantemente gripado, ficava ainda mais inseguro. O dilema entre ficar em casa com Rafinha sem o atendimento necessário ou enfrentar as ruas recifenses no transporte público lotado, correndo o risco de o menino ficar sem ar ou mesmo se contaminar com o novo coronavírus não era algo fácil de se resolver.


E foi assim, imersas em mais uma epidemia, agora com patamar pandêmico, isoladas em suas casas, mas com o auxílio de alguma internet, que Janaína e outras mães de micro se juntaram em eventos online, nas famosas lives do Instagram e do YouTube para trocar experiências, desabafar, denunciar o esquecimento e o descaso do estado com seus filhos e filhas em meio a pandemia de Covid-19. Deram entrevistas, organizaram eventos com mães de outros estados, chamaram até profissionais de saúde para dar dicas de como cuidar das crianças em casa. Colocaram a boca no trombone. A movimentação dessas mães deu tão certo que uma fonoaudióloga que assistia a um desses vídeos organizados pelas mães de micro, se comoveu com a fala de uma mãe que denunciava as fortes crises espasmódicas da filha desde que ficou sem as terapias por conta da urgência do Covid-19. Após a live, a fonoaudióloga ficou mexida, entrou em contato com essa mãe, se disponibilizou voluntariamente para ir até sua casa estimular a menina, como eram feitas as terapias com as crianças cujas famílias possuíam renda para pagar por um serviço personalizado. Em casa, com a filha recebendo o tratamento, essa mãe contou para a profissional sobre a necessidade de as terapias não serem interrompidas e a fonoaudióloga começou a atender outras crianças em suas respectivas casas, a vê-las como prioridade, assim como Dona Zefa tanto desejou.


Infelizmente Rafinha ainda não foi contemplado com a terapia itinerante da fonoaudióloga que se comoveu com a história de uma das mães de micro. No entanto, e mais uma e outra vez, fica o lembrete, a necessidade, e a importância de ressaltar que essas crianças não devem e não podem ser esquecidas pelo estado. Elas existem, vivem, e sobrevivem às dificuldades acarretadas pela Síndrome Congênita do Vírus Zika e, agora, pela pandemia de Covid-19. Os efeitos de uma epidemia não acabaram e outra epidemia já chegou, mas assim como Dona Zefa já vem ressaltando há tempos, saúde tem que vir primeiro lugar. E quando se trata de cuidar e salvar vidas, nenhuma delas deve ser negligenciada.

[1] O termo “de micro” está associado ao fato de os bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Vírus Zika terem como característica mais visível a microcefalia. Por conta disso, elas ficaram popularmente conhecidas como “bebês/crianças de micro”, e suas mães como “mães de micro”, em referência aos seus filhos com microcefalia congênita, como elas mesmas se intitularam.

Publicado originalmente na Rede Covid-19 Humanidades

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