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O pior sabor é o de chocolate: novas e antigas estratégias de cuidado no atravessar de duas epidemia

Raquel Lustosa C. Alves


Mestre em Antropologia Social pela UFPE



Quarta-feira costumava ser o dia da semana em que Flora entrava em contato com novas experiências degustativas, sensórias e motoras. Sua mãe, Celeste, carregava no potinho plástico de tampa colorida diferentes tipos de frutas picadas, inteiras ou amassadas. O cardápio era pensado no dia anterior, na terça-feira, e a mãe gostava de variá-lo como Suely, a fonoaudióloga da menina, sugeria em seus encontros semanais. A comida viajava na lancheira de Flora, perto da mochila com o casaco de frio, os remédios, a mamadeira e a pasta de documentos, exames, laudas médicas e também um catálogo de produtos cosméticos que a mãe revendia entre as colegas. Essas coisas percorriam longos trajetos aos cuidados de Celeste e na companhia do motorista da prefeitura, seu Reginaldo, responsável pelo transporte de um dos municípios da Zona da Mata até o centro de Recife.


Todas as vezes em que mãe e filha chegavam ao Lírio Azul, a unidade de reabilitação em que Flora era atendida, os objetos eram alocados na cadeira de rodas da pequena. A lancheira ia no vão da cadeira, embaixo do assento. A sempre volumosa mochila era apoioada em uma de suas hastes. Por lá, Celeste manuseava e dirigia a cadeira de rodas guiando sua filha até a sala em que aconteciam as sessões de fonoaudiologia e fisioterapia. Neste espaço, Celeste e Flora encontravam outras mães e crianças, grande parte residentes no interior ou em municípios mais afastados da capital pernambucana. Essas famílias se encontravam semanalmente para cumprir a bateria de estimulações às crianças diagnosticadas com a “micro” – uma das consequências reprodutivas da epidemia do Zika que se espalhou pelo território brasileiro em 2015.


A “fono” compunha esse conjunto de terapias, assim como a fisioterapia, a terapia ocupacional e a hidroterapia. Inclusive, essa era uma das terapias mais valiosas para Celeste e para Flora, porque Suely as deixava bem à vontade na sala: atendia a criança quando ela não estivesse muito sonolenta pelo efeito dos remédios ou pelo sono provocado pelos deslocamentos da longa viagem e também permitia que a mãe pudesse cochilar no espaço contíguo ao da terapia ou realizar qualquer outra atividade durante o tempo da estimulação. Além disso, Suely se mostrava próxima ao cotidiano de mãe e filha. Sugeria que Celestre trouxesse alimentos economicamente acessíveis para a estimulação, interagia pelo WhatsApp quando alguma dúvida sobre a terapia surgia e mantinha contato frequente para saber se ambas passavem bem. Para Celeste, Suely demonstrava interesse pelas crianças, pelas mães e por seus contextos de vida. Sua comunicação não se restringia aos protocolos do trabalho que uma fono empreendia. Pelo contrário, se estendia à realidade das pessoas que atendia, à realidade dessas mulheres e de suas crianças. Suely vinha fazendo cursos para se especializar nos cuidados que exercia, comprava materiais que ajudassem nesse trabalho, como é o caso do laser utilizado para potencializar o desenvolvimento dos músculos para a fala e a linguagem. Ela também se mostrava atenta às necessidades dessas famílias. Esses eram alguns dos motivos que faziam Celeste dar preferência a essa terapia e a essa terapeuta.


Contudo, Celeste, Flora, Suely, tantas outras famílias e a autora, que vos escreve, foram surpreendidas por uma pandemia que nos limita ao espaço doméstico. Por conta do Covid-19, as medidas de distanciamento social sugeridas pelo Ministério da Saúde fizeram com que a fonoaudiologia e tantas outras terapias, consultas e exames entrassem em suspensão. Com isso, a rotina de Celeste e Flora foram duramente modificadas. Os horários de sono, medicação, banho e terapias - agora realizadas somente com a mãe - precisaram ser reorganizados. Por conta do cenário, Celeste perdeu as redes de apoio, como a escolinha ou a casa da avó, espaços em que Flora recebia outros cuidados que não apenas o da mãe.


Nas conversas que temos por Whatsapp, Celeste relatou grande apreensão pelo cenário da pandemia que provocou perda de renda em casa, como a renda dos produtos das revistas que circulava pelos itinerários terapêuticos, por exemplo. Ela também contou sobre os eventos febris de Flora, que tem ficado estressada com a rotina de casa, com a falta de socialização com outras crianças da escola e pela ausência da bateria de terapias. Apesar de Celeste continuar realizando as estimulações dentro de casa, “não é a mesma coisa”, contou. Seu tempo foi bastante capturado pelo trabalho doméstico, pelo trabalho do cuidado da filha mais velha e do marido. Ficar em casa se tornou cada vez mais desafiador para a família.


Suely, por sua vez, tem adaptado as sessões de fonoaudiologia por videochamada através do próprio aplicativo Whatsapp, o que conforta Celeste. As sessões têm acontecido com menos frequência e de acordo com horários que Celeste dispõe, já que sua rotina sofreu uma sobrecarga ainda maior. Diante desse contexto, Celeste fala sobre as dificuldades de acompanhar as sessões de fisioterapia, dos problemas com a rede de internet e da falta de aparelhos para estimular Flora, como as escovas faciais de massagem que Suely oferecia na unidade de reabilitação.


Mas as dificuldades não acabam por aí. As consequências da pandemia também acentuaram a falta de medicamentos e alimentos especiais fornecidos pelo Estado, como é o caso do Fortini, suplemento nutricional utilizado por quase todas as crianças com a SCVZ, que está em falta na prefeitura do munícipio onde Celeste e Flora residem, como relatou. A falta deste suplemento, por exemplo, foi suprida pelo Pediassure, que apresenta uma base nutricional parecida, como a nutricionista sugeriu à mãe. Para Celeste, o sabor também importa. “No mês retrasado ela recebeu o de baunilha e no mês passado de chocolate. O sabor chocolate se tornou muito enjoativo e, no sabor baunilha, o mais enjoativo é o aroma, não muda muito o sabor. Mas o de chocolate é muito enjoativo, eu praticamente só dou uma vez ao dia, forneço fruta, comidinha normal, passo na peneira, no liquidificar, pra suprir o que ela não tá tomando do suplemento do leite. Eu sempre coloco outras coisas, porque o de chocolate, nem eu! Quando eu provei achei horrível, mas to aceitando”.


Celeste narrou episódios de angústia, ansiedade e medo vividos pelas repercussões do cenário atual da pandemia. No entanto, mesmo antes da pandemia, ela tem arquitetado soluções para as dificuldades que encontra na ausência do Estado em suprir as demandas de saúde da filha, assim como de tantas outras crianças com deficiência. Mudar a receita nutricional, acolher o tempo de uma mãe, realizar uma consulta virtualmente e ampliar o repertório de saberes sobre a “geração da micro” têm sido etapas significativas nesse contexto. É dessa forma também que Celeste, assim como fonoaudióloga e nutricionista e outras tantas mães de micro, continuam desenvolvendo estratégias de cuidado para que as crianças também possam se desenvolver suas infâncias no atravessar de duas epidemias.


Publicado originalmente na Rede Covid-19 Humanidades

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