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A pandemia não nos parou: mobilidades e terapias em tempos de Covid-19

  • microhistorias
  • 21 de dez. de 2020
  • 5 min de leitura

Júlia Vilela Garcia


Mestranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília




Sofia fará cinco anos em novembro. Apesar da pouca idade, já passou por muita coisa desde que chegou ao mundo, no ano de 2015. A pequena Sofi, como é chamada carinhosamente por sua mãe Nataly, nasceu com a Síndrome Congênita do Vírus Zika. Desde os seus primeiros meses de vida tem passado por inúmeras terapias, tomado diferentes medicamentos e realizado alguns procedimentos cirúrgicos para corrigir a posição das perninhas e facilitar a visão, consequências que o vírus lhe causou ainda quando estava na barriga de sua mãe.


Quem vê Sofia com um largo sorriso no rosto, como o de sua mãe, não imagina os aperreios que ambas já enfrentaram nestes anos, e nem os bales[1] que já deram pelas ruas, dentro dos ônibus, nos balcões das clínicas e nas salas dos hospitais da Grande Recife para garantir os direitos da criança de micro, como ficaram conhecidos, devido ao perímetro de suas cabecinhas[2], os bebês nascidos com a Síndrome Congênita. Não foi fácil para Sofi conseguir vagas nas diferentes instituições da cidade e com diferentes terapeutas. Fonoaudióloga, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional. Tudo foi conquistado com muita luta para que a estimulação precoce, vista pelos médicos como a chave para o desenvolvimento destes bebês, desse os resultados esperados. Era preciso estimular desde cedo para o bebê evoluir, progredir, aprender com mais facilidade os movimentos, e ambas batalharam juntas para conquistar um lugar dentro das instituições médicas.


A estimulação precoce de Sofia dava ótimos resultados, mas, assim como foi difícil para que filha e mãe conseguissem vagas nas clínicas e nos hospitais da cidade, também não era fácil para Nataly, depois de um dia inteiro de estimulação com a filha, ver que à noite Sofia tinha uma crise convulsiva, chorava, sentia incômodo, esquecia os aprendizados da semana. A cada crise, uma perda. Mas não era só no sorriso que mãe e filha se pareciam. Ambas tinham força de vontade para recomeçar, superar os obstáculos, mesmo que fossem no tempo único de Sofi e não no tempo de outras crianças sem a Síndrome Congênita, tampouco no tempo da biomedicina. Tinham a paciência para aprenderem juntas, seguirem na companhia uma da outra. Pareciam, mãe e filha, incansáveis.


Mas não tardou para que Sofia e Nataly demonstrassem exaustão, estresse, tristezas. Era duro para as duas passar o dia todo na rua, indo de um lado para o outro dentro do transporte público, perambular de terapia em terapia. Em um único dia, por exemplo, chegaram e pegar 12 ônibus. Nataly passou mal, Sofia se incomodou. Quase não tinha tempo para ficar em casa porque andar pela cidade era sinônimo de cuidar da filha. Não havia outro modo, se faltassem às terapias por mais de três vezes, voltavam para o fim da longa fila de espera por uma vaga no serviço de reabilitação. A rua, a clínica e o hospital eram a sua segunda casa. Passavam mais tempo nesses lugares do que em qualquer outro.


Então, antes mesmo de Sofi completar seus cinco anos, mãe e filha foram surpreendidas com a notícia de uma nova epidemia desconhecida do outro lado do mundo. Os primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus foram identificados na China, em 2020. Logo o vírus se espalhou pelo planeta, tornou-se uma pandemia misteriosa, como foi a epidemia do Zika em 2015. Não tardou para que o novo vírus chegasse em Recife, nos bairros, ruas e vielas que mãe e filha tanto conheciam, andavam, frequentavam. Não demorou para que o comércio fechasse, os ônibus diminuíssem sua frequência de circulação e as recomendações para ficar em casa chegassem aos ouvidos de Nataly. O isolamento social era a regra para se evitar o contágio, não superlotar os leitos dos hospitais já tão precarizados pela falta de investimento, tentar conter a nova doença misteriosa que até então não tem vacina, medicamento, solução.


Nataly recebeu com pesar a notícia de que as terapias da filha estavam suspensas por tempo indeterminado, justo agora que a filha estava evoluindo, deglutindo bem, tendo menos crises. Pensou sobre o que poderia ser feito. O novo coronavírus estava matando muita gente e ela tinha medo de pegar esse vírus e não conseguir cuidar da filha. Ou, pior, de passar para a filha que já tinha comorbidades respiratórias e poderia ter consequências ainda mais graves. A notícia de que as clínicas e hospitais fariam atendimento pelo telefone e por videoconferências aliviou a mãe, pois os quase cinco anos acompanhando a filha em tantos lugares tinham lhe dado algum conhecimento para estimular e aplicar as manobras terapêuticas na filha. Ela novamente tomaria as rédeas da situação, daria um jeito. Mãe, filha e terapeutas davam o melhor de si, mesmo que à distância, faziam o que estava ao alcance no meio da pandemia.


Assim foram os primeiros meses de 2020, as terapeutas passavam uma orientação de um lado da tela, e do outro lado Nataly puxava uma perninha de Sofi aqui, esticava um bracinho acolá, preparava papinhas para que a filha não se esquecesse como comer, mastigar e engolir. Até o padrasto de Sofia entrou na dança, se revezava na tarefa com a esposa, aprendia manobras, ambos ficavam atentos aos sinais da menina até que perceberam a volta dos engasgos. Tentaram dar um jeito, mas a fisioterapia respiratória, que ajuda na deglutição, é delicada demais para ser plenamente realizada pelos cuidadores de Sofi. Alguns movimentos só poderiam ser executados pela profissional. Notaram, algum tempo depois, que os bracinhos e perninhas da filha encurtaram. Sofi estava voltando a atrofiar, independentemente das manobras feitas pela mãe e dos conselhos virtuais que chegavam das especialistas. Não tardou para que Sofia voltasse a ter crises espasmódicas recorrentes. Esqueceu como engolir, chorava copiosamente, como na época em que nascera e ninguém sabia o que fazer. Andava irritada e Nataly se desesperava. A sensação era de que os quase cinco anos estimulando Sofia, cada ônibus lotado, cada ida à terapia, estavam escorrendo pelo ralo. Mãe e filha estavam inquietas, sem dormir, comendo mal. Não havia teleatendimento e videoconferência que resolvesse a situação de Sofia, o que obrigou Nataly a tomar uma decisão.


“A pandemia não nos parou”, contou Nataly ao me relatar sobre a decisão de voltar a levar a filha às terapias presenciais, que estavam retomando suas atividades depois de meses paralisadas. O novo coronavírus havia parado o mundo, as atividades econômicas, os passeios, as aulas, as viagens e transações comerciais, mas não havia parado Sofia e Nataly. Com medo do vírus, mas com mais medo ainda da piora no quadro de saúde da filha, Nataly se arrumou, juntou as coisinhas da filha numa bolsa, colocou máscaras combinando em Sofia e nela mesma e voltaram a circular pelas ruas da cidade. Se o conselho era ficar em casa para se cuidar, era nas andanças fora de casa que o cuidado com Sofia se colocava em prática. Ficar ou sair não era bem uma escolha. De toda forma, as duas já tinham sido afetadas pela primeira epidemia e poderiam ser afetadas pela segunda, mas Sofi já tinha ficado tempo demais longe das terapias, Nataly não sabia mais o que fazer ao ver o sofrimento da filha. Temia que a filha pudesse não fazer aniversário, fosse pela contaminação do novo vírus, fosse pelas crises que voltavam a acometer a pequenina.


Tinha medo, muito medo. Era uma decisão difícil, ficar em casa e sofrer com a SCVZ; sair de casa e arriscar-se com o Covid-19. Mas também estava cheia de coragem. Assim que os atendimentos começaram, aos poucos, a serem retomados, decidiu que era hora de voltar às clínicas e aos hospitais. Nataly queria ver a filha bem, sem crises, sem dor.


Ainda havia muito trabalho pela frente. Ainda tinha muito o que comemorar.

[1] Expressão local que significa brigar, dar uma bronca, reclamar algo, chamar atenção para alguma situação, exigir de forma firme. Quem se porta dessa maneira está, portanto, “dando um bale”.

[2] Apesar de não ser a única consequência, a microcefalia é uma das características mais visíveis nas crianças nascidas com a Síndrome Congênita do Vírus Zika. Por conta disso, elas ficaram popularmente conhecidas como “crianças de micro”, e suas mães como “mães de micro”, como elas mesmas se intitulam.


Publicado originalmente na Rede Covid-19 Humanidades

 
 
 

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