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A casa de Sofia: família, deficiência e moradia nos tempos da epidemia do Zika

Barbara Marques antropóloga e mestranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília barbaraa.marciano@gmail.com

Soraya Fleischer Antropóloga, professora da Universidade de Brasília fleischer.soraya@gmail.com

Rumo à realização do sonho

Caía uma chuva fina. Acordei antes do sol nascer para colocar todo mundo de pé. Lavei a louça que estava na pia, passei um café com bastante açúcar. Enquanto isso, minha mãe, que também já havia acordado, fazia o mingau das crianças. Fiquei me perguntando, “Onde está aquele homem? Ele não dormiu em casa, disse que ia trabalhar de vigia no turno da noite, mas só deus sabe onde ele está!” Levantei as duas mais velhas, penteei o cabelo, escovei os dentes, vesti a roupa. A mãe já estava dando o mingau. Hora de levantar minha caçula: com jeito cheguei perto dela, dei um beijinho na testa que logo a despertou de seu sono leve. Arrumei o cabelo dela e já preparei a sonda para dar-lhe a primeira alimentação do dia.

Enquanto alimentava Sofia, liguei para ele. Caixa de mensagem. Não é possível que ele vai fazer isso comigo.Foi tão difícil conseguir juntar a documentação, pleitear a casa, convencê-lo a assinar o termo e esperar até chegar a minha vez. Hoje é o grande dia, dia em que vamos assinar o contrato da casa de Sofia, como eu gosto de chamar. Somos casados há alguns anos, mas não sinto que as coisas me pertencem. Na verdade, ele sempre deixou claro que nada do que é dele é meu. Quando preciso de uma carona para levar a Sofia em suas terapias,ele sempre diz que precisocolocar gasolina na moto; quando preciso de dinheiro para remédios ou leite dela, ele me dá, mas é sempre emprestado, preciso pagar de volta. Nem parece que a filha também é dele.

A assinatura do contrato do novo apartamento precisa ser feita por nós dois, porque somos casados no papel. Mas eu queria poder assinar sozinha, eu queria colocar só no nome da Sofia. Como eu sempre digo, ela dificilmente vai ter chance de trabalhar e ganhar o dinheiro dela. Diferente das irmãs, que poderão comprar a casa delas um dia. Por isso, essa casa do Programa Minha Casa Minha Vida, que consegui justamente porque reservaram vagas para as crianças com a síndrome do Zika. Essa casa é da Sofia. Consegui por meio dela, consegui para ela.

O que eu tenho são minhas filhas. E por elas sou capaz de tudo. Telefonei mais uma vez e de novo caixa de mensagem. A ansiedade de assinar o contrato e pegar as chaves fazia meu estômago doer. É hora de sair, estamos atrasadas. Pego a mãe, as meninas e seguimos rumo ao local onde estava marcado para a assinatura do contrato de financiamento de nossa casa. Meu celular vibra, tem uma mensagem dele: “Amor, saí do trabalho agora. Encontro vocês na assinatura do contrato”. Não dá tempo de responder.

A cidade já estava desperta e a chuva que caía fina e gelada intensificava o engarrafamento. Eu queria chegar às 7h da manhã, mas já estava perto das 8h. Finalmente, chegamos naquela praça onde tinham marcado o evento das assinaturas. Havia uma grande movimentação.Um homem de uniforme e microfone, que reconheci ser do banco que construiu os apartamentos, a Caixa Econômica Federal, começou a dar instruções: “Não pode vender, não pode alugar, não pode deixar o imóvel vazio. De jeito nenhum. Tem que pagar a prestação do condomínio, todo mês. Nós vamos anotar no papel para vocês o valor do pagamento.”

Peguei meu caderninho que estava na mochila, enquanto a mãe não desgrudava os olhos das meninas. Eu com Sofia nos braços anotei atenta as instruções do moço. “Quando eu chamar seu nome completo, vocês têm que vir com a RG ou o CPF na mão. Se o cônjuge assinou lá no começo, ele tem que estar aqui hoje também”. Essa última frase me gelou a espinha, tudo indicava que estavam para começar a chamar nossos nomes e nada do meu marido chegar. “Vou primeiro chamar as prioridades, os idosos e pessoas com deficiências”, acrescentou o instrutor. Nós seríamos chamadas rapidamente, por causa da deficiência de Sofia. Éramos sempre a prioridade das prioridades, e isso era muito bom, mas não quando se depende de outra pessoa para conseguir alguma coisa.

Começaram a chamar os nomes. As pessoas se direcionavam ao prédio com portas de vidro,ali na entrada eu via as mesas de plástico com pilhas e pilhas de papéis em cima. Duas moças também com o uniforme do banco preparavam a assinatura do documento. Eu não acredito que tive tanto trabalho para nada, já que não havia sinal desse homem chegar. Foram várias idas até a prefeitura, primeiro para me informar dos documentos necessários: identidade, comprovante de endereço, de renda, documentos do cônjuge, dos filhos, cópia do laudo médico de Sofia.Depois fazer todas as cópias. Os comprovantes de renda e de endereço deveriam ser dos últimos três meses. Tive que pagar essas contas, sempre meio atrasadas. Depois a luta de convencer esse homem assinar o termo. Em todas as idas até o cadastro de habitações da prefeitura levei as crianças. Às vezes, prefiro sair com minhas filhas para não dar o que falar. Vou ligar para ele mais uma vez.

Uma mão gelada encosta no meu braço. Ufa, ele está aqui!Ele me dá um beijo na bochecha e pega Sofia do meu colo. Terminaram de chamar os nomes da primeira lista, mas por que não me chamaram? O café doce que tomei de manhã revira no meu estômago. Corro até as moças dos contratos, nervosa e gaguejando pergunto o que aconteceu, porque não chamaram nosso nome. A moça pediu meu RG. Entreguei e ela logo começou a vasculhar nas pilhas de papéis.Por sorte logo encontrou o que tinha meu nome, colocou em um saquinho transparente e entregou ao moço do microfone que logo me chamou. Fomos até ele, eu e meu marido que carregava Sofia nos braços, como se tivesse cuidado dela a manhã inteira. Quem vê até pensa que ele é um bom pai, que se dedica, que está sempre conosco. Em casa quase não põe a criança no colo, nem segura, nem embala, nem consola o choro insistente de Sofia. Hoje está se exibindo.

Quando peguei aquele saquinho plástico da mão do funcionário da Caixa Econômica, eu quase não acreditei. O futuro de Sofia estava ali, agora ela teria uma casa. A casa de Sofia!

Enquanto descíamos a rampa voltando em direção às mesas dos contratos esbarramos com Alice, uma colega, uma outra “mãe de micro,”que também estava ali para assinar seu contrato. Ela parecia aflita e fui logo perguntando o que tinha acontecido. Alice informou que seu contrato estava com um problema: o apartamento não se localizava no térreo, mesmo sendo mencionado muitas vezes que precisávamos ocupar apartamentos mais acessíveis, por conta da deficiência e da falta de elevadores para manejar os carrinhos e cadeiras de rodas das nossas crianças. Logo fui saber se o apartamento de Sofia era no térreo. A moça dos contratos disse que sim e logo me informou o passo à passo do pagamento das prestações. Retirei meu caderninho mais uma vez da mochila, enquanto minha mãe e meu marido esperavam com as crianças do lado de fora, eu comecei a anotar cuidadosamente o que a moça dizia, para não esquecer de nada. “Não chegará boleto, você vai ter que ir no banco ou em uma casa lotérica para pagar a prestação todo mês. Se tiver conta na Caixa Econômica pode usar a função de débito automático. O primeiro vencimento é todo dia 21 do mês, não pode antecipar o pagamento e nem adiar o pagamento. Todo mês, você vai pagar R$80,00 e o governo R$ 500,00. Se antecipar você vai pagar R$ 580,00 e não terá a ajuda do governo, entende?”.

Anotei tudo. Olhei ao redor, vi aquele tanto de gente trabalhadora, também lutando para ter um teto para chamar de seu. Meu marido, sempre com Sofia no colo, e eu entramos até o balcão. Por vários minutos, assinamos páginas e páginas de papel. Recebemos uma cópia do contrato, que eu vou fazer questão de plastificar inteirinho para não perder, nem sujar. O contrato na mão. Sofia sorria satisfeita, balançando o laçarote colorido que eu tinha colocado no seu cabelo. Eu nem acredito! Estou muito, muito feliz! É a realização do meu sonho, agora é conseguir pagar a casa.

A casa dos sonhos

O Minha Casa Minha Vida (MCMV) é o principal programa de habitação social no Brasil. Lançado em 2009, o programa visa reduzir o déficit habitacional do país e oferece subsídios a três faixas de renda familiar: Subsídios integrais a famílias cujos rendimentos somados atingem o valor de três salários mínimos (faixa 1); Subsídios parciais aquelas cuja renda mensal fica entre três a dez salários mínimos (faixa 2 e 3). Desde sua primeira edição, o programa Minha Casa Minha Vida conta com critérios de prioridade para pessoas deficientes e idosas, com cerca de 3% das habitações são reservadas a esse público.

Recentemente a prefeitura de uma das cidades de Pernambuco reservou 5% de suas habitações populares a pessoas portadoras de deficiência e idosas. Pernambuco foi um dos estados mais afetados pela epidemia do Zika vírus, que atingiu inúmeras mulheres durante a gestação e ocasionou o nascimento de milhares de crianças portadoras da síndrome congênita do Zika vírus. A iniciativa da prefeitura possibilitou que às “mães de micro,” como são conhecidas essas mulheres, pleiteassem habitações em nome de seus filhos e assim tivessem prioridade no recebimento da casa. Esta história conta sobre o dia da assinatura do contrato de uma casa do programa por uma dessas mães de micro.Nossa equipe tem feito pesquisa na região desde 2016, acompanhando sempre a mesma dúzia de mães de micro ao longo do tempo. Sempre que retornamos à cidade, acompanhamos essas mulheres em suas atividades diárias de cuidado com a criança, a prole, a casa, a família. Vamos às terapias, consultas, exames, reuniões e ações públicas que demandam atenção com os atingidos pela epidemia. De modo longitudinal, temos a chance de ver as dificuldades que enfrentam, as soluções que conseguem mobilizar.

Sair do aluguel e adquirir uma casa própria, “morar no que é seu”, como dizem, é o sonho de muitos brasileiros e brasileiras. No caso das famílias de micro, esse sonho ganha uma dimensão especial. Embora completamente dedicadas às crianças com a síndrome, essas mães sabem que elas enfrentarão dificuldades para crescer e se manter. A casa é uma garantia para seu futuro e, ao mesmo tempo, uma garantia para o presente da família toda. Como a mãe que aqui retratamos, essas famílias conseguiriam poupar o recurso antes destinado ao aluguel, em geral a maior despesa de um orçamento doméstico.

Esse dia da assinatura do contrato reúne muitos fios em uma única história. Revela, desde o microcosmo familiar, como os cuidados com uma criança com deficiência é geralmente acumulado pelas mulheres da família, em geral mãe, avó e irmãs mais velhas. Revela também como transitar por uma grande metrópole como essa tem seus desafios em termos de transporte, tempo, acessibilidade para cadeiras de rodas, por exemplo. Também testemunha o encontro de cidadãos e o Estado, quando políticas públicas são colocadas finalmente em prática e conseguem considerar especificidades de seus beneficiários, como pessoas com mais idade ou pessoas com deficiência. Mas a história não nos deixa esquecer de como acessar uma política pública, de habitação por exemplo, exige uma dedicação de muito meses para reunir, apresentar e ter aceitos um conjunto de documentos e comprovações da existência, da deficiência, do vínculo conjugal etc. Além disso, foi necessário ouvir, de modo inquestionável, as regras para honrar pelo recebimento do imóvel. Rito de autoridade e disciplina foi repetido pelos microfones que circulavam pelas mãos dos funcionários da Caixa Econômica naquela manhã.

Nesse dia da assinatura do contrato, vimos reunidos aspectos relacionados às estruturas de gênero, conjugalidade, deficiência, moradia, renda e presença do Estado. Vimos também os três tempos de uma só vez, o tempo que se tentava deixar no passado de carestia e precariedade do aluguel, o tempo presente da conquista e realização, o tempo futuro da esperança e projeção de vida adulta de uma criança com uma síndrome rara. Um evento, tantas nuances que podem ser comunicadas com a casa de Sofia.

Publicado originalmente no blog Somatosphere.

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