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Sobre fé, santas e remédios

Ana Claudia Knihs de Camargo Graduanda em Antropologia, Universidade de Brasília

anaclaudiadecamargo@hotmail.com

Em cima do rack da sala de estar, à direita da TV e ao lado da santinha que protegia a casa, estava a tupperware transparente, tão importante quanto à imagem de Nossa Senhora de Fátima. Para Carla, essa pequena caixa também continha objetos de proteção, que cuidavam da saúde de Mila, sua caçula nascida com a Síndrome Congênita do vírus Zika em 2015 ali na cidade de Recife, Pernambuco. As dezenas de medicamentos ali guardados eram sagrados e esmerados por diversos motivos: o alto custo, receitas de difícil acesso, toda a burocracia envolvida na hora de consegui-los. A complexidade do acesso aos medicamentos fazia com que, muitas vezes, precisassem ser perfeitamente calculados para não faltarem no fim do mês.

A mão fechada, a baba escorrendo pela boca de Mila, os tremores intensos e os olhares perdidos eram sinais que alertavam Carla para o fato de que, tratando-se de convulsões, a sua Santa Padroeira era a dos Remédios. Aos poucos, o compromisso que tinha com as receitas médicas prescritas à filha passou a ser tão importante quanto o de sua Igreja aos domingos. Os sinais que indicavam uma crise convulsiva eram sutis, e, por este motivo, precisava ficar atenta a tudo que Mila expressava com seu corpo, adiantando qualquer possibilidade de mal estar, em uma intensa arte de divinação.

Os medicamentos significavam muito para Carla: eram pílulas revestidas de promessas, com toda autoridade médica que lhe assegurava que funcionariam, e das bulas que não deixavam dúvidas de sua eficácia. Em certo momento, há cerca de dois anos, Carla afirmou com convicção: "Minha fé é na ciência". Não só tinha esperança nos exames que Mila fazia, mas também participava, ela mesma, de diversas pesquisas. A cada novo arranjo medicamentoso prescrito à filha, Carla renovava uma esperança de melhora. Diagnósticos infortunados nunca lhe foram suficientes.

Mesmo assim, era comum que os medicamentos consumidos por Mila precisassem ser alterados constantemente. "Depois de algum tempo, o organismo se acostuma", explicava Carla. Com isso, a mãe sugeria que, no que diz respeito à eficácia, os medicamentos tinham um prazo de validade no organismo da filha. Os mesmos fármacos que outrora controlavam suas crises convulsivas poderiam, sem aviso, parar de agir em seu corpo. Por esse motivo, Mila já tinha passado por mais de oito arranjos medicamentosos diferentes. Aos poucos, os medicamentos tornavam-se cada vez mais ambíguos. Eram motivo de preocupação para Carla quando faltavam, mas também se preocupava quando a filha os consumia em excesso.

Certa vez, Mila sofreu uma forte crise convulsiva intensa e precisou ser levada com urgência ao hospital mais próximo. Lá, administraram Berotec, remédio que lhe deu uma grave reação alérgica. Passou 15 dias internada na UTI até poder levar alta e, felizmente, voltar para casa sem consequências além da preocupação que assolou toda a família. Paulatinamente, Carla ia ganhando uma postura cada vez mais crítica, entendida de que a biomedicina não era uma fábrica de milagres.

Atualmente, o tamanho da tupperware diminuiu. As crises convulsivas, que ainda acontecem, agora se manifestam com certa sazonalidade. Por este motivo, Mila pôde reduzir o consumo de medicamentos, embora a mãe não possa suspendê-los permanentemente. Essa redução deu um alívio ao orçamento doméstico, inclusive. “Nosso estresse é só o leite, porque o remédio eu pego no posto”, explicou Carla. Os remédios eram conseguidos no posto de saúde perto de sua casa, só a Melatonina era mais difícil de conseguir, pois custava cerca de R$80 e precisava ser comprada. A Melatonina é um hormônio muito receitado para regular o sono das crianças, e Carla vinha sofrendo com a insônia de Mila. Os horários da criança estavam desajustados: dormia mais de dia do que de noite, atrapalhando a rotina das terapias reabilitadoras e também qualquer possibilidade de descanso da mãe.

Ainda que conseguisse a maior parte dos medicamentos de forma gratuita, Carla ainda ficava ressabiada: “Mas eu não gosto muito de dar remédio, sabe. Para mim, um remédio é uma droga, é fazer a criança ficar dopada. Eu sempre diminuo a dose dos remédios que passam para ela. Tem muita gente que dá muito remédio para essas crianças, elas ficam dormindo o tempo todo, o tempo todo. Não quero isso, não. Quero ver a minha filha ativa”.

Os medicamentos não eram mais estáticos, dignos de uma fé inabalável. Eram, com certeza, tecnologias importantes para o bem-estar de Mila e Carla, mas perderam o posto de autoridade inquestionável às vistas desta mãe. Podiam falhar, perder a eficácia, causar efeitos colaterais inesperados. Nem por isso, Carla tornou-se menos otimista quanto ao destino de Mila: ela comemorava todas as pequenas vitórias da filha e jamais deixou de conceber belos planos para o seu futuro. A tupperware dos medicamentos diminuiu, mas a imagem de Nossa Senhora de Fátima continuava de pé, no centro de sua sala de estar.

Histórias marcantes e intensas como essa nos foram contadas por jovens mulheres da Grande Recife/PE que estão, no momento, vivendo a maternidade de crianças com a Síndrome Congênita do Vírus Zika.

Publicado originalmente no site da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar).

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