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Um feliz dia das mães

Thais Valim

antropóloga e mestranda, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

thaismvalim@gmail.com

Os primeiros dias de maio sempre introduzem o assunto da maternidade: como o dia das mães é comemorado no segundo domingo do mês, a partir do final de abril e início de maio muitas propagandas e promoções começam a ser divulgadas: “um carinho a mais é tudo - sabonetes promocionais para presentear a sua rainha!”, “mãe é tudo de bom: demonstre seu amor por meio das nossas peças de artesanato!”, “se sua mãe ficar sem presente a culpa não é nossa”. Nas redes sociais, como o Facebook e o Instagram é possível acompanhar também inúmeros depoimentos de filhos e filhas amorosos, que dedicam textos e homenagens às suas mães.

De alguns anos para cá, um movimento simultâneo das próprias mães denuncia, também a partir de postagens em redes sociais ou colunas de opinião em jornais e blogs, como esse produto do imaginário da maternidade retratado nas propagandas e promoções destinadas ao dias das mães falha em considerar a sobrecarga vivenciada pelas mulheres enquanto exercem seu papel de mães: o cuidado é exclusivamente imputado a elas, seja da casa, do companheiro, dos filhos.

Há vários indicadores de que esses desafios atrelados ao contexto social da maternidade se intensificam em alguns cenários, como no cuidado de filhos com deficiências. Atualmente, tenho acompanhado a rotina de mulheres que tiveram filhos diagnosticados com o que se entende hoje em dia como a síndrome congênita do vírus da zika. A microcefalia, por exemplo, é um dos sintomas mais conhecidos da síndrome, mas não é o único.

As crianças que conheci apresentam um amplo espectro de manifestações da infecção, que variam muito em cada caso: crises convulsivas, alterações ortopédicas, oftalmológicas, cardíacas, síndromes de refluxo, problemas de constipação intestinal, dificuldade de deglutição, isso para listar alguns dos sintomas clínicos que observei ou me foram relatados.

Quem dá conta desse quadro, atendendo às demandas de cuidado da criança, são as mães. Conheci mulheres que passam todos os dias da semana na rua, peregrinando por diversos centros e institutos de saúde para garantir a terapia dos filhos. Dividem esse tempo com a necessidade de buscar exames, marcar e ir em consultas, eventos e audiências públicas, farmácias, além dos cuidados com a casa, como lavar roupa, fazer faxina, comprar comida, todas tarefas que também recaem quase exclusivamente sobre elas: “Mulher, eu não faço mais nada além de cuidar dessa aqui, viu, não tenho direito nem de ficar doente, porque se eu fico doente, quem cuida dela?”, me revelou Inácia, mãe de Gisele, ambas moradoras de Natal/RN.

A realidade vivenciada cotidianamente por Inácia e tantas outras mulheres que conhecemos está muito distante da glamurização da maternidade incentivada no segundo domingo do mês de maio. A sobrecarga vivenciada pela mulher que é mãe é uma dificuldade relatada por todas as mães que conheço, não só no contexto da epidemia do Zika; todas as mães que conheço sentem-se frustradas pela falta de reconhecimento e apoio de todo esse esforço que fazem para promover a qualidade de vida em suas famílias.

No caso das mulheres com filhos “especiais”, como algumas chamam, essa ausência de reconhecimento, além de todas as outras problemáticas, passa também pela discriminação e pelo preconceito com relação às crianças: “A gente passa cada coisa em ônibus. É motorista que não para quando vê cadeira de rodas, é passageiro dizendo que lugar de gente doente é em casa e não na rua… Já chegaram a me perguntar se Enzo era filho do mosquito”, desabafou Glória sobre o tratamento que ela e o filho recebem nas ruas de Natal/RN, cidade onde Enzo faz as terapias.

O vai-e-vem pela cidade carregando o filho nos braços ou conduzindo cadeira de rodas por ruas esburacadas e desniveladas tem consequência na saúde das próprias mulheres: “E a dor no lombo? Ixi, é tanta dor desde que tive meu filho que nem sei. Eu tinha que tratar, tinha que cuidar de mim, mas quem disse que consigo, que tenho tempo?”, continuou Glória.

Apesar das dificuldades, todas as mães que conheci garantem que é muito aperreio nessa lida, mas amam seus filhos e fariam de tudo por eles. A dificuldade não vem do filho ou da maternidade em si, e sim, do preconceito, da sobrecarga, da falta de uma rede de apoio, das dificuldades financeiras, das muitas ausências do Estado. Para suprir essas faltas, as mulheres cuidam. Da casa, da família, das terapias: “a gente cuida de tudo e de todo mundo, mas quem é que cuida da gente?”, me disse Jaqueline, uma terceira mãe que conhecemos a partir do projeto em Natal.

A figura da mãe mítica, que tudo faz, tudo movimenta e tudo consegue é atualizada na data comemorativa das mães. As mulheres realmente desempenham esse papel mítico, são gigantes guerreiras em seus cotidianos, mas o custo disso, de dar conta de toda a demanda, cobrança e fiscalização, é muitas vezes a saúde, física e mental.

Um “feliz dia das mães” para muitas das mulheres que conheci não significa uma caixa de chocolates ou um conjunto de sabonetes cheirosos: significa reconhecer o trabalho de cuidado que desempenham e atuar de formas que amenizem a necessidade de dedicação exclusiva e integral das mães. Um feliz dia das mães vem do respeito pela maternidade e pela infância, em todas as suas formas e possibilidades, reconhecendo seus prazeres, mas também suas dificuldades.

Texto originalmente publicado no site Metrópoles.

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