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Microcefalia e preconceito Uma carta à editora

Ana Claudia Knihs de Camargo

Graduanda em Antropologia/UnB

anaclaudiadecamargo@hotmail.com

Em meados de 2015, o assunto do Zika vírus começou a ser muito discutido no Brasil. Em 2016 foi declarada situação de emergência no Nordeste devido ao grande número de casos de bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Zika vírus na região, e o Brasil inteiro se comoveu com a situação das “mães de micro", como geralmente se denominam as principais cuidadoras desses bebês. O aparecimento do vírus do Zika na região e a situação das crianças nascidas com microcefalia estavam sendo bastante discutidas na mídia nacional como um todo. Infelizmente, nem mesmo toda essa divulgação acerca da situação foi suficiente para reduzir o estigma social que a microcefalia carrega junto consigo: diversas mães de micro relataram casos de insultos e comentários desrespeitosos direcionados às crianças, tornando a rotina complexa que elas já têm ainda mais difícil e psicologicamente desgastante.

Yasmim foi uma das mulheres que conhecemos em nossa pesquisa e com quem seguimos convivendo e conversando no Recife/PE. Mateus, seu filho nascido com microcefalia, só tinha um ano e dois meses de vida, mas Yasmim já conseguia se lembrar de diversas vezes em que fora alvo de preconceito. Conseguir pegar o ônibus que precisavam era o primeiro desafio: alguns motoristas não tinham paciência, ela dizia, arrancavam o ônibus com muita velocidade, não paravam para ela, fechavam a porta antes da hora… Sentada com Mateus no seu colo, muitas vezes, reparou que o lugar do seu lado permanecia vazio, mesmo quando o ônibus estava cheio e haviam pessoas em pé. De gente na rua, ela já ouviu coisas como “Seu filho é um ET” e um motorista de ônibus já chamou Mateus de “monstro”. Convivia com olhares maldosos que se manifestavam rotineiramente e alguns, mais curiosos, perguntavam “Ele nasceu com essa doença, foi?”. Incomodada, Yasmim nos ensina: “Gente, não é doença. Meu filho não tem uma doença. Doença é assim quando pega de uma pessoa para a outra. Meu filho não tem isso. Ele não pegou de ninguém. Doença é uma coisa, deficiência é outra".

Segundo o antropólogo, Charles Gardou[1], a deficiência é um fenômeno paradoxal: em partes, é individual e biológico, mas a sua interpretação é sempre feita de modo coletivo e social. Isso quer dizer que a maneira com que compreendemos e aceitamos (ou não) as pessoas com algum tipo de deficiência dizem muito sobre a nossa sociedade, e em diversos aspectos, sobre nós mesmos. A exclusão, a rejeição e o ostracismo social direcionados à essas pessoas mostram o quanto a nossa sociedade é capacitista, ou seja, preconceituosa e discriminatória com pessoas que possuem algum tipo de deficiência. O capacitismo é baseado em um ideal padrão de corpo “perfeito” e é perpetuado por discursos que negam a autonomia e humanidade para as pessoas com deficiência. No contexto da Síndrome Congênita do Zika vírus, esse tipo de preconceito é direcionado aos bebês e suas mães.

Quando questionada sobre o porquê de ter mudado de endereço recentemente, Beatriz - outra “mãe de micro" - respondeu que “enfrentara um problema com o antigo proprietário”. Contou que ele havia dito que achava que “o mosquito tinha feito uma desgraça com seu filho”. Beatriz, bastante ofendida, prontamente respondeu que o filho estava numa situação muito melhor do que ele: estava crescendo, tinha a possibilidade de melhorar, enquanto ele, o antigo proprietário, só envelheceria!

O preconceito em relação à deficiência dessas crianças também aparecia em um âmbito familiar, de forma mais “sutil” - ou velada. Giovana, mesmo morando ao lado da casa da mãe, não podia contar com nenhuma ajuda da família para cuidar do seu filho, João. Giovana achava que sua mãe tinha nojo ou repulsa de seu filho, e completou: “Você vê, sabe, você vê quando a pessoa não dá aquele cheiro gostoso no bebê. Ela faz isso com os outros netos tudinho, mas não com o meu filho. É bem diferente o tratamento. Eu fico muito triste com isso, muito mesmo".

As próprias crianças portadoras da Síndrome Congênita do Zika vírus talvez não tenham (ainda) idade suficiente para entender a dimensão social que essa deficiência pode vir a ter nas suas vidas. Até lá, entretanto, as mães de micro seguem carregando esse peso sob seus ombros sozinhas.

Essa é toda uma realidade que afetou muito mais as regiões Nordeste e Sudeste do país. Mas, como estudiosa do tema e participante dessa pesquisa, julgo importante trazer os dilemas vividos por essas mães para a nossa realidade do Centro-Oeste. Como antropólogas, precisamos estar atentas a esses fenômenos de preconceito.

[1] GARDOU, Charles. “Quais os contributos da Antropologia para a compreensão das situações de deficiência?”. Revista Lusófona de Educação 8, 2006, pp. 53-61.

Publicado originalmente na Revista Textos Graduados, 31/01/2019 http://periodicos.unb.br/index.php/tg/article/view/22483/20438

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