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O morango de Giulia

Helena Prado

Autora convidada Pós-doutoranda em Antropologia IFRIS/Universidade Paris Descartes, França helenamprado@gmail.com

Em uma tarde de outubro de 2017 no centro do Recife, entro numa sala de fisioterapia pediátrica. Tenho visita marcada para observação junto com uma aluna de pediatria que pesquisa os cuidados das crianças do Zika.

Naquela tarde as fisioterapeutas receberão três crianças com síndrome congênita de zika, isto é, crianças cujo quadro neurológico clínico e laboratorial foi comprovado como sendo decorrente de uma infecção pelo vírus do zika.

A sala de fisioterapia é grande e vários objetos e equipamentos estão espalhados ao redor. As fisioterapeutas são todas acompanhadas por uma estagiária que ajuda nos exercícios com os pacientes.

Ana[1], uma mãe bem-humorada e bonita entre 35 anos e 40 anos, é atendida às 14 horas com a filha Giulia no colo. Lucas, o filho mais velho, de 9 anos, lhes acompanha. Ana chegou carregada de bolsas e sacolas. Ao entrar na sala da clínica, ela troca beijinhos com a fisioterapeuta Laura e senta no chão sem parar de falar, para colocar a filha no tapete de exercícios. Lucas segue calmo e bem-comportado e senta ao lado da mãe.

Essa sessão de fisioterapia é uma das múltiplas atividades terapêuticas de Giulia. Ana leva a filha cinco dias por semana a diversos lugares ao redor da cidade para diferentes tipos de tratamento, como sessões de estimulação precoce e fisioterapia na água.

Giulia acabou de completar dois anos e sofre de microcefalia grave. É uma menininha que apresenta todos os sinais aparentes dos códigos sociais de gênero, atualmente em moda: toda arrumadinha, o cabelo cacheado e loiro enfeitado com uma fita de laço branco e dourado, e de vestidinho azul marinho. Nas orelhas, brincos de ouro.

Ela parece mais um bebê, pelo tamanho e pelo comportamento, do que uma menina de dois anos. Quando está no colo da mãe, ela não sustenta a cabeça, baba, quase não abre os olhos e não enxerga. Antes ela usava óculos, como muitas crianças com síndrome congênita de zika, mas os médicos acabaram dizendo que não serviam para nada. Antes de a criança chegar, Laura havia me descrito assim sua pequena paciente: “Ela tem um quadro cognitivo muito comprometido e não interage. A verdade é que ela nao está evoluindo como gostaríamos”.

Com toda a doçura do mundo, Laura dá o bom dia para Giulia e começa os exercícios tocando-a carinhosamente com as mãos. Ela desdobra os membros da criança pouco a pouco e com cuidado, abre a mãozinha, depois coloca uma faixa para manter os braços bem retos e colocá-la de joelhos, apoiada nos braços. Cada movimento é muito lento. Não sei se a Giulia sofre; ela não chora, mas resmunga. Com certeza deve ser um processo penoso.

Lucas continua calmo e observa com muita atenção os esforços da irmã. De vez em quando ele olha pra mim, uma estranha, e olha para as outras fisioterapeutas e crianças da sala com curiosidade. Em algum momento, parece que ele quer brincar, atraído pelos objetos que observa.

Ana mal olhou para mim, me ignorou. Talvez esteja acostumada a ver pessoas diferentes todas as semanas. Mas durante toda a sessão, que dura meia hora, Ana conversa e ri com Laura. Sinto a intimidade entre as duas mulheres, o hábito e a confiança de quem vem toda a semana com a esperança que a filha possa progredir graças à fisioterapia.

É preciso notar que o fenômeno dos “observadores” – pesquisadores, jornalistas e outros curiosos – tem-se espalhado, assim como a consequente rejeição dos mesmos por parte das famílias afetadas pela epidemia. Por outro lado, as outras mães de crianças com deficiência (como paralisia cerebral, doenças raras) questionam a falta de visibilidade dada a outras doenças graves e negligenciadas e queixam-se do abandono de suas crianças pelo Estado.

Ouvi falar desse fenômeno, mas não foi preciso muito para que eu questionasse a minha legitimidade a estar ali, observando. Não me sinto à vontade de estar contemplando e ouvindo conversas pessoais e a intimidade dessas mães na hora em que seus filhos recebem cuidados.

Ana conta sobre a festa do segundo aniversário da filha que aconteceu no fim de semana anterior. À medida que descreve o vestido que a Giulia usou, os presentes, o bolo de três andares, ela mostra as fotos no celular à terapeuta. São fotos alegres, coloridas, de festa de criança, com direito a tema de desenho animado e toda família reunida: mamãe, papai, Lucas e Giulia, fazendo pose para os fotógrafos.

Quando a Laura pergunta como a Giulia tem se sentindo, como ela está comendo, Ana responde que ela come bem e adora frutas. Por isso ela carrega junto com ela um processador: “É para fazer vitamina de frutas na hora, entre várias sessões de fisioterapia”. E, balançando a Giulia no colo ela muda de voz para falar como se fosse a criança se expressando: “Minha mãe faz isso, e eu adoro. Mas quando minha mãe faz outra coisa, eu não gosto”.

Quando a sessão termina, Ana abre uma das sacolas e tira um tupperware cheio de brigadeiro e cupcake que deixará para as terapeutas. As estagiárias aproveitam o momento para tirar fotos no celular com a Giulia, ela parece ser um xodó dos profissionais de saúde. Por fim, Ana tira umas lembrancinhas de uma das sacolas e as distribui: são morangos artesanais, de feltro, recheados com plumante, bem fofos e grandes, que podem servir de chaveiro. Eu também ganhei um da mão dela.

Depois de se despedir de todas as fisioterapeutas, Ana sai da sala, carregando Giulia no colo, acompanhada de Lucas. Ela se senta novamente na sala de espera, sem falar, um leve ar de cansaço passa no seu rosto. Ela tira o processador da bolsa, para fazer a vitamina de frutas da filha: está na hora de comer.


*

Ao primeiro sentimento de estar presente “como uma estranha”, se sobrepõe a ambivalência do estatuto de antropóloga que observa uma relação entre indivíduos num contexto de grande vulnerabilidade social. Mas o incômodo não reside onde poderíamos pensar. É necessário compreender as relações que operam para melhor entendê-lo. Por um lado, a conversa entre Ana e Laura traz a banalidade do cotidiano dentro de um contexto extraordinário de doença infantil. Por outro lado, apesar do espectro inquietante de um desenvolvimento – e de uma vida – “normal” interrompido, a Giulia se revela como sujeito normativo dentro da perspectiva de gênero e idade: através do cuidado estético da mãe e da linguagem que ela expressa – se colocando como a voz da própria filha –, bem como no movimento corporal induzido pela terapeuta.

O morango de Giulia está comigo até hoje, ele viajou primeiro de volta a São Paulo e agora a Paris. Não quis doá-lo para alguém que pudesse usá-lo, ou para uma outra criança. Não sei direito o porquê. Com certeza é mais que uma lembrancinha de aniversário. Um presente de uma mãe que não me devia nada, a recordação desse momento passado com a Giulia, e sobretudo a busca da normalidade: a esperança de uma vida em que se possa comemorar muitos outros aniversários, como qualquer criança deveria ter e como toda mãe e todo pai gostaria de poder dar aos filhos.



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