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A especialidade de Iago: um ponto ali no meio

André Justino

Doutorando em Antropologia, Universidade de Brasília


É no bairro periférico da Nova Descoberta, no coração do Recife, que encontramos Iago Vinícius, dois anos, e sua mãe, Marília, 31. Iago é um dos milhares de bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. No entanto, diferentemente de grande parte dos bebês que as pesquisadoras encontraram em suas andanças, ele é uma criança desperta, com uma postura mais firme e ereta, sem a curvatura da coluna cervical que é uma das marcas dessa geração de bebês.

Para Marília, Iago é especial. Tudo ele precisa aprender: comer, andar, falar etc. Nisso ela não diferencia seu filho dos demais bebês de micro. No entanto, é perceptível na fala de Marília que ser especial é estar em um ponto intermediário: ele tanto pode melhorar, quanto pode piorar. Na verdade, ser especial é ser como qualquer outro ser humano, já que, na visão dela, todos podemos tanto melhorar quanto piorar. Em uma discussão com o proprietário da antiga casa em que morava, Marília argumentou que seu filho não era a “desgraça do mosquito”, como acusava o homem. Ele era especial, ele podia (e na verdade já estava) melhorando, enquanto o velho, dada a idade avançada, “estava indo ladeira abaixo”.

O que mais seria, então, a especialidade de Iago, que a mãe tanto aciona para falar de seu bebê?

Investigando um pouco mais, conseguimos ver que, para essa mãe de micro, a especialidade de seu filho é ensinar. Iago ensina os médicos e terapeutas a se adaptarem a ele, ao seu corpo e às suas necessidades. Frente ao discurso biomédico em construção, o bebê mostra a cada dia uma novidade, provoca sempre uma revisão do entendimento maior acerca dessa Síndrome epidêmica. Quando nasceu, a previsão médica fornecida à mãe era de que ele iria “vegetar”. No entanto, aos três dias de vida, ele “levantou a caixa do peito acima do berço”, como que para “calar os médicos”. Marília diz que nenhuma criança com essa idade faz dessas coisas.

É por meio da especialidade de Iago também que Marília convida seus outros filhos a refletirem sobre a deficiência. Quando a visitamos, a interlocutora nos contou de um vizinho que faz uso da cadeira de rodas para se locomover, mas que apesar de fazer uso da cadeira, é mais capaz do que a própria Marília. Em um dado momento, um dos irmãos de Iago perguntou por que esse homem era “doente das pernas”, ao que a mãe repreendeu, dizendo que doença é algo que incapacita, e o vizinho é tudo, menos incapaz. Ele circula pelo bairro, joga futebol no campinho com os colegas, cumprimenta e trata bem as pessoas que encontra pelo caminho. A forma como Marília vê a microcefalia de Iago não é muito diferente; para ela, o filho está sempre melhorando, sempre se tornando mais capaz.

A especialidade também é uma provocação, um desafio aos esforços de normalização e generalização dos bebês de micro. Iago é ativo; de olhos bem abertos observa o mundo à sua volta, reage quando falam com ele e acompanha conversas. Ele se alimenta de tudo, como diz Marília. Come frutas e verduras amassadas e macarrão. O leite em pó que consome é desses mais comuns achados em muitos mercados. Iago se dá bem com tudo isso, não usa sonda, não precisa da cadeira de rodas, nem dos óculos que muitos outros bebês com a síndrome utilizam. O bebê ensinou a mãe que nem tudo que os médicos falam tem que ser verdade. Ele mostra como ser desperto é importante para responder às terapias, por exemplo. E ela se esforça para falar com outras mães sobre isso.

A Síndrome provocou o surgimento de uma intensa rede de trocas de informações, doações, afetos e saberes entre as chamadas mães de micro. Marília se insere nessa rede como uma crítica à biomedicina e suas definições de micro, tão restritivas e categóricas. Ela é crítica, por exemplo, ao uso excessivo dos remédios anticonvulsivos, que deixam os bebês muito sonolentos e diminuem sua capacidade de resposta frente aos estímulos terapêuticos. Para Marília, é o fato de Iago não usar os medicamentos que faz com que ele seja tão diferente dos demais. Além de estar sempre desperto, ele não é gordo como os bebês que fazem uso dos medicamentos. Marília, a partir de uma experiência prévia com psicotrópicos, associa a gordura dos bebês ao uso excessivo do remédio, seria quase como um caminho natural de um corpo que dorme muito e só acorda para comer.

A especialidade de Iago é ser ambíguo, ele é potencial encarnado. Para Marília, ele está sempre melhorando e esse é o objetivo de todas as mães que percorrem os itinerários terapêuticos intensos com esses bebês. “Tem sempre uma luz no fim do túnel”, afirma a mãe. E Iago é justamente o ponto intermediário no meio deste túnel. A especialidade deste bebê é ser puro potencial e expectativa ensinando diariamente as cuidadoras que nada para ele é estabelecido e limitado, ele pode ficar ali no meio do túnel, como pode também retornar. Mas Marília acredita, e é uma protagonista importante em também fazer as demais mães de micro acreditarem, que Iago e seus contemporâneos avançarão, serelepes, em direção à luz no final do túnel.

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