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O “probleminha na cabeça”e a eufemização do sofrimento em tempos de epidemia do Vírus Zika

Aissa Simas

Graduanda em Ciências Sociais, Universidade de Brasília


Diego foi o segundo bebê a nascer com microcefalia no Estado de Pernambuco, no contexto da epidemia do zika vírus, em agosto de 2015. Pouco se sabia então sobre a associação entre o vírus e as malformações fetais notificadas em número sem precedentes, e menos ainda se dava informações confiáveis às mães. A confirmação dessa correlação, posteriormente batizada por especialistas como “Síndrome Congênita do Vírus Zika”, foi divulgada pelo Ministério da Saúde apenas em novembro daquele ano. Para Mirela, mãe de Diego, o diagnóstico de microcefalia foi recebido somente após o parto.

“Ninguém sabia ou dizia nada”, conta Mirela sobre o início do processo. O primeiro indicativo de que havia algum problema veio aos seis meses de gestação, em uma ultrassonografia de rotina, quando ela estranhou o comportamento dos profissionais de saúde, que conversavam no meio da consulta, à sua revelia, e se entreolhavam sem lhe dirigir uma palavra. O médico deu seu parecer primeiro a um colega de trabalho, convocado durante a análise das imagens de ultrassom. Apenas depois de insistir no seu direito de saber o que estava acontecendo, a paciente foi informada sumariamente de que seu bebê tinha um “probleminha na cabeça”.

O percalço da gravidez para Mirela foi, desde o começo, permeado por problemas de saúde e passagens por uma miríade de médicos e hospitais. No início do sétimo mês de gestação, Mirela entrou prematuramente em trabalho de parto. Não lhe foi facultada a cesariana, o que é especialmente relevante quando se considera que a criança com microcefalia, tendendo à atonia muscular, tem dificuldade para percorrer o canal vaginal. Devido a complicações no parto, Mirela ficou em coma por cinco dias. Ao acordar, ela recebeu dos médicos o filho em seus braços e o anúncio de que Diego tinha, de fato, um “problema”.

“Ninguém me explicou nada no hospital. Saí de lá sem saber nada”, contou Mirela. Ela só começou a entender qual era o grau do problema de volta em casa, ao fazer pesquisas na internet. Sua busca revelou não só a dimensão biomédica, mas a dimensão social e epidemiológica da situação: “Foi aí que eu percebi que tinha outros casos acontecendo aqui em Recife, muitos outros casos”.

A microcefalia não constava no universo de possibilidades inicialmente considerado por Mirela, que temia a síndrome de Down, e, sobretudo, a hidrocefalia como possíveis “problemas na cabeça”. À época, ela não fazia ideia da associação entre micro e zika vírus, e hoje contesta esta versão oficial como uma narrativa parcial, de conveniência para as autoridades.

A certa altura, já com a criança em casa, Mirela desandou a chorar. Sua mãe tentou consolá-la dizendo que Diego era seu filho e seria amado do mesmo jeito, mas, para Mirela, o problema não estava no filho, mas no hospital. A cronicidade que ela antevia geraria o intenso e continuado contato com profissionais de saúde, com burocracias hospitalares, com os balcões do Estado. A partir de sua experiência, sabia que enfrentaria uma realidade de descaso e violência nas instituições públicas.

A microcefalia criou uma geografia social da epidemia do zika vírus: delineou um perfil para suas vítimas, em sua maioria mulheres jovens, pobres, negras e nordestinas, afetadas específica e desproporcionalmente por problemas estruturais de saneamento básico, coleta de lixo e abastecimento de água, e, para além disso, marginalizadas na rotina dos tratamentos de saúde.

Mirela não recebeu esclarecimentos sobre sua gravidez ou sobre a situação de saúde de seu filho, não foi comunicada diretamente pelos profissionais de saúde, ouviu eufemismos e teve diagnósticos adiados. Essa história expõe como as desigualdades têm consequências crônicas, que se retroalimentam e geram novas dificuldades a longo prazo. As políticas públicas de saúde se tornam, assim, um fator de reprodução dessas desigualdades, reforçadas e confirmadas com a falta de informações, de clareza, de sensibilidade.

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