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A grande tia e o pequeno sobrinho: contrastes entre pessoas com deficiência

Júlia Vilela Garcia Graduanda em Antropologia, Universidade de Brasília juliagarcia.unb@gmail.com

Apesar da alta estatura, era difícil enxergar Maria Fernanda. Como uma criança de castigo num canto da sala esperando a autorização da mãe para brincar e conhecer o mundo além das quatro paredes da casa, Maria Fernanda tinha dentro de si desejos e vontades de mulher adulta, mas também carregava o peso das palavras de ordem de seus familiares, que lhe diziam quando, como e a que momento ela poderia ser ou não ela mesma. A deficiência intelectual de Maria Fernanda, que a acompanha desde o seu nascimento até hoje, aos 20 anos de idade, a impede de realizar tarefas comuns da vida adulta como tomar um banho sozinha, como sair na rua. Sobretudo, sua condição demanda atenção e cuidados especiais por parte dos membros da família. Dona Célia, sua mãe, é a responsável principal pelos cuidados de Fernanda, banhando, educando e repreendendo a filha quando necessário. Além dela, Clarisse também colabora com os cuidados, mesmo tendo Luquinhas como a sua principal fonte de atenção. Clarisse é irmã de Maria Fernanda e mãe de Luquinhas, uma criança que possui a Síndrome Congênita do Vírus Zika. Maria Fernanda traz consigo algumas dificuldades ocasionadas pela sua deficiência intelectual, que segundo Dona Célia foi acarretada por situações de estresse durante a gravidez e o parto. “Não seguraram ela direito”, disse Dona Célia ao contar sobre o descaso dos médicos na hora de a criança nascer. Esse descuido foi um fator agravante no que ela chama de “desvio na cabeça” da filha. Mesmo com as dificuldades acarretadas pelo “desvio na cabeça” de Maria Fernanda, a longa convivência com a deficiência dentro de casa parece amenizar os obstáculos que Clarisse poderá enfrentar com Luquinhas no futuro. “Fernanda faz isso mesmo” e “É normal ela ser assim” foram frases ditas naturalmente pela irmã para que nos ambientássemos melhor e compreendêssemos os comportamentos de Maria Fernanda. O cuidado despendido ao longo dos anos com a irmã era uma espécie de guia para os cuidados necessários com o filho. A deficiência e suas particularidades e desafios não era algo inédito naquela família. O menino, tendo prioridade na matrícula, já participa das atividades escolares. Entretanto, Clarisse ainda tem medo de como irão tratá-lo, dos preconceitos que o filho poderá enfrentar já logo cedo e sem o apoio da mãe por perto. Preocupação recorrente entre essas mães de micro (como elas decidiram se apresentar publicamente), que precisam deixar seus filhos na escola, muitas vezes, em tempo integral. Mas se é das pedras que se constroem pontes, a deficiência de Maria Fernanda era também a base para pensar um futuro menos nebuloso para Luquinhas, que poderia se desenvolver sob os cuidados e conhecimentos prévios acumulados por Clarisse. Ela sabe que o cuidado com o filho demanda paciência, luta por cidadania, interpelação do Estado e construção de esperança. Mesmo sendo uma mulher alta, Maria Fernanda não recebe atenção como pessoa com deficiência; ao passo que; o pequeno Luquinhas, com apenas quatro anos de idade, já se faz presente na luta pelos seus direitos e seu desenvolvimento. O menino, desde sempre, acompanha a mãe nas reuniões dos movimentos sociais que apoiam as famílias atingidas pela epidemia do vírus Zika, para discutir e planejar estratégias para ter acesso a terapias, medicamentos, transporte adequado e consultas necessárias. Juntos, e com o apoio de outras mães de micro, eles estão por dentro das legislações, dos debates políticos, das reportagens de jornal, do que há de novo na ciência e do que ainda poderá acontecer na vida das pessoas com deficiência ocasionadas pela Síndrome do Zika. Embora seja Maria Fernanda quem serve de espelho para os cuidados e o desenvolvimento de Luquinhas, quem sabe não será ele o responsável por dar também visibilidade a ela?

Texto originalmente publicado no projeto Cravinas.

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