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Cuidar cuidando, descobrir e aprender com crianças com deficiência

Monique Batista

Mestre em Antropologia/UnB

monique2508@gmail.com


Existiria um dentro assim como um fora. Fora e dentro de nós. Esse era um dos dilemas que me pareceu abordar a experiência de crianças com deficiências e que fora apresentado por Lúcia. Lúcia praticava o ofício de fisioterapeuta em Recife/PE, diariamente atendendo crianças que traziam consigo algum diagnóstico médico de deficiência. Além de fisioterapeuta, contou que era mãe de um menino com menos de dez anos e de uma menininha que faleceu em decorrência de uma doença rara que a acompanhou durante os anos de vida. Entre as atividades elaboradas num dia de trabalho, ao mesmo tempo que uma criança com a Síndrome Congênita do Zika Vírus era manuseada a partir do saber Técnico-Científico da profissional, ela debatia, igualmente, em companhia das mães e dos bebês, acerca da legitimidade e da necessidade dessas crianças poderem desde cedo acessar e se amadurecerem dentro de relações para com o mundo. Por consequência, contando como essas crianças normalmente eram classificadas nos espaços públicos como menos capazes de aprender ou interagir e também da necessidade de tencionar essa visão no intuito de transformá-la positivamente.

Em diálogo com a mãe de Bernardo, uma criança descrita como bastante “reparadora”, atenta aos movimentos daquilo que a cercava; a mãe comunicou a profissional que havia conquistado uma vaga numa creche nas proximidades do lar para o filho, mas que aguardava a chegada de uma monitora para acompanhá-lo. Ele era um dentre os muitos bebês nascidos com a síndrome nas periferias do nordeste a partir de 2015/16, momento em que o Brasil enfrentou a epidemia do Zika Vírus, associada a um novo vírus transmitido pelo Aedes aegypti – nosso popular e multifacetado mosquito da dengue. Perante a notícia, Lúcia enalteceu a iniciativa da mulher em buscar uma creche para o filho, dizendo: “Isso mesmo. Tem que ir pra escola. Lá, vai ver outras crianças. Isso é muito importante pra eles, para desenvolverem”. Em outro momento, Lúcia explicou que no próprio espaço de trabalho é importante que as crianças sejam estimuladas umas pelas outras, aprendendo e criando desafios entre elas. Uma criança que ainda não caminha necessitaria assim ser estimuladas por outras crianças que já se aventuravam a conquistar as primeiras passadas, ou a se tornarem mais reparadoras na presença de Bernardo.

Por outro lado, enfatizou que igualmente é relevante que as crianças que não apresentam deficiências diagnosticadas convivam e aprendam com aquelas que apresentam: “É importante socializar com outras crianças. É importante elas conviverem com uma criança especial, aprendam a cuidar. É cuidar cuidando, aprendendo a não malvadar”. E completa: “Tem muita mãe com medo de mandar pra creche. Mas a criança vai se adaptar no começo. A gente ensina a professora a usar a sonda. No começo pode parecer novo, mas ela consegue fazer direitinho. Ninguém é insubstituível. Eu, como mãe, posso morrer, preciso considerar quem vai cuidar da minha filha se eu faltar”. Elucida esse pensamento trazendo fragmentos da experiência ao lado da própria filha, de uma ocasião em que necessitou deixar a menina aos cuidados da avó e de como tal senhora ficou aflita e entrou em uma crise de choro diante da recusa da menina em ser alimentada, atraindo a atenção da vizinhança. Retornando para casa, depois de passar no mercado, com sacolas entre as mãos, Lúcia de longe avistou a movimentação nada comum ao redor da casa; em disparada correu em busca da filha temendo que o pior tivesse acontecido enquanto as compras se espalhavam pelo chão.

Em todo o posicionamento de Lúcia, antes de mais nada, fica marcado o comprometimento com a construção de um horizonte menos hostil em relação às crianças com deficiências, em que elas possam habitar além do espaço doméstico e das instituições de saúde, desenvolvendo habilidades que muitas vezes lhe são negadas. Crianças com a síndrome do Zika não só podem aprender como também podem ensinar e estimular as demais. Elas não precisam estar fechadas dentro de um diagnóstico, nem dentro de casa, nem em si mesmas. Igualmente importante na fala dessa fisioterapeuta é reestabelecer a distribuição do cuidado, onde o cuidado se aprende cuidando por se tratar, justamente, de uma ação relacional, recíproca, mútua. Entretanto, como proceder se não há monitores que possam atendê-las dentro de sala de aula? Ou mesmo, diante os muitos casos nos quais essas mães e esses filhos são humilhados dentro do transporte público, onde a humanidade deles reiteradamente é negada? Talvez o medo das mulheres de mandarem seus filhos tão pequenos para a creche reúna uma apreensão de que as crianças possam estar expostas as malvadezas de outras crianças e de adultos ignorantes das necessidades e potencialidades de pessoas com deficiências. O medo é tudo isso acontecer, como experimentam todos os dias, mas dessa vez distante do olhar protetor dessas mães. Ou da desconfiança de que serão elas quem empreenderão os maiores esforços de sensibilização ao ensinarem sobre a existência da diferença e da deficiência em uma comunidade escolar. Mesmo assim, muito potente é acompanhar a proposta de Lúcia de que a mudança perpassa por uma reescrita do cuidado no qual as responsabilidades se redistribuem entre um número maior de atores abertos a se afetarem e recompor um pouco do mundo social que habitamos.

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