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Quantidade, qualidade, temporalidade: Microcefalia e políticas de desenvolvimento

Aissa Simas

Graduanda em Ciências Sociais Universidade de Brasília

Quando primeiro chegamos em Recife, em meados de 2016, “estimulação precoce” era a palavra de ordem. Durante toda a temporada de pesquisa, ouvimos repetidamente de profissionais de saúde e de mães que o desenvolvimento dos bebês com micro dependia da prática de terapias, tratamentos e técnicas corporais os mais variados e o mais cedo possível. Falavam em termos de atraso e progresso, evolução e retrocesso, aprendizagem e esquecimento, e a estimulação precoce estava na fronteira de todo esse potencial, entre a expectativa e a concretização do desenvolvimento.

A construção de diretrizes nacionais para a estimulação precoce foi uma das ações prioritárias do Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia, lançado em dezembro de 2015 pelo governo federal. Esse protocolo, definido como um “programa de acompanhamento e intervenção clínico-terapêutica multiprofissional”, era direcionado aos profissionais de saúde básica e especializada e delineava os contornos de uma política institucional que respondia especificamente à epidemia do zika vírus, priorizando o tipo de microcefalia a ela atribuída.

No encalço dessas políticas, a pressão ficava sobre as mães para “correrem atrás” dos serviços de saúde. Desde os primeiros meses de vida, a agenda médica dos bebês era cheia. A forma com que estavam disponibilizadas e organizadas as consultas e terapias (em horários e sequências convenientes para as instituições, mas não para as mães ou para os bebês, de forma fragmentária, em diferentes instituições, em locais de difícil acesso) tornavam-na ainda mais extenuante. Para completar, as mães estavam ainda sob o risco de serem excluídas dos serviços como punição pelas faltas. A estimulação precoce aparecia no horizonte como a grande solução, e a falha em obter tratamento era tratada como uma falha pessoal das mães.

O estresse que essa rotina provocou nas mulheres e nos bebês deu abertura a uma perspectiva destoante, que encontramos pela primeira vez conversando com Vanda, avó de Caco, ainda em 2016. Caco nasceu em 2014, fora da temporalidade construída para a epidemia, e consequentemente teve uma trajetória diferente daquela dos bebês com micro atribuída ao zika. Primeiro, ele nasceu antes do período associado diretamente à epidemia do vírus. Segundo, teve um diagnóstico mais tardio e dispôs de menos informações, estrutura e serviços à época das primeiras manifestações de seus sintomas. Não começou a estimulação nos primeiros meses de idade, mas aos dois anos, e ainda hoje não tem o mesmo acesso a recursos que são, na prática, restritos aos bebês com a chamada Síndrome Congênita do Zika Vírus. As orientações médicas nesse caso seguiram uma linha distinta: “A fisioterapeuta me disse que o que importa não é a quantidade, é a qualidade das terapias”, conta Vanda.

Quando voltamos a campo em 2017, esse discurso figurava com mais alcance e mais força. A estimulação precoce parecia perder a posição de centralidade absoluta em favor de uma atitude mais relativista em relação ao desenvolvimento, com outras prioridades. Para Silvana, fonoaudióloga que atende em uma das instituições que prestam serviços especializados para crianças com deficiência no Recife, não é bom nem para as mães nem para os bebês frequentarem múltiplas instituições e fazerem terapias de formas diferentes. Segundo ela, esse esforço resultaria numa rotina cansativa e contraproducente. O mais importante eram os trabalhos terapêuticos que as mães deveriam repetir em casa, no cotidiano.

O que acompanha essa virada argumentativa é um quadro de alta demanda dos serviços, cortes de verbas públicas e esgotamento das instituições. Nos meses precedentes, grande parte dos hospitais (incluindo esse onde atua a doutora Silvana) estavam dando alta para as crianças que se aproximavam dos dois anos – não como um atestado de melhora, mas com base em um diagnóstico de não-evolução. “A alta é por decisão técnica”, disse uma representante institucional, justificando a falta de protocolo. Mais da metade das crianças atendidas vinham sendo desligadas de tratamentos até então considerados essenciais para que se pudessem abrir vagas nas instituições para bebês mais novos e para casos menos graves, ou simplesmente porque esses serviços iriam deixar de ser ofertados.

Em nosso encontro seguinte, o que Vanda nos disse a respeito disso é que, se os bebês não estavam se desenvolvendo, havia algo de errado nas terapias e os serviços deveriam dar mais atenção às crianças, não o contrário – e que isso era óbvio para todas as mães, mas não o era para as instituições. A culpa era relegada à mãe que não levava o bebê para a terapia, ou ao bebê que não evoluía, e as instituições mantinham os casos que convinham apenas para mostrar serviço: “Tudo é mídia, tem que ter evolução. Ninguém vê o lado das mães. Que se não fizer terapia, atrofia. O que dá pra fazer eu faço, mas não dá pra fazer tudo, né? Precisa de fisio”, reclamou Vanda.

Nas diretrizes para a estimulação precoce sancionadas pelo governo federal, ainda em 2016, conforme um dos parceiros do país, consta o seguinte: “Esta é a fase em que o cérebro se desenvolve mais rapidamente, constituindo uma janela de oportunidades para o estabelecimento das fundações que repercutirão em uma boa saúde e produtividade ótima no futuro” (Unicef, 2015). O que se pode extrair dessa meta central – a otimização da capacidade produtiva – a partir do fato de que os bebês com microcefalia mostravam novas complicações e não uma progressão estável? O estatuto de humanidade dessas pessoas se tornava negociável face à possibilidade de não se tornarem produtivas e funcionais?

Uma visão que contrapõe a quantidade e a qualidade das terapias, como se fossem fatores mutuamente excludentes, acaba por normalizar a falta de acesso a recursos essenciais e a precariedade dos serviços de saúde, de transporte e de formação, caracterizados como circunstâncias inevitáveis da realidade. A escolha que está sendo oferecida entre um bom tratamento e uma quantidade suficiente de tratamento é uma falsa escolha – é uma imposição que constrange ao imobilismo e produz efeitos idênticos em questão de desenvolvimento.

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