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UMA e AMAR: pertencimentos e tensões

Thais Valim

Antropóloga, Universidade de Brasília

Quando seu Joaquim, pai de Marco Túlio, ouviu que seu filho tinha microcefalia, custou a acreditar. Dizia a Regina, sua mulher, que os médicos tinham errado: “esse menino não tem nada, não, Regina, ele é normal”, dizia. Foi só depois de assistir a uma reportagem na televisão sobre o aumento de casos de microcefalia na Grande Recife que o diagnóstico foi se firmando como realidade na vida de seu Joaquim. Regina conta que o marido chegou em casa anunciando que tinham várias crianças com o mesmo problema de Marco, que se tratava de um fenômeno coletivo.


Essa coletividade que tanto chamou a atenção do pai de Marco Tulio e que serviu para convencê-lo do quadro patológico mais amplo na cidade é uma faceta central da epidemia. Muitas crianças nasceram com microcefalia em um curto período de tempo. Se hoje em dia o conhecimento biomédico ainda caminha sobre um terreno de especulações, na época em que as primeiras crianças diagnosticadas com a síndrome estavam nascendo havia um total desconhecimento por parte da biomedicina sobre a classificação, definição e orientação sobre como cuidar e assegurar o bem estar daqueles bebês. As mães viram-se, então, diante de um tipo de cuidado que exigia demandas muito específicas em um cenário confuso e instável. Mas aos poucos foram conhecendo umas às outras: a partir de práticas de cuidado semelhantes, circulando pelas mesmas terapias, cruzando umas com as outras nos ônibus e metrôs, as mulheres aos poucos puderam firmar uma rede de contato, troca e amparo.


Foi nesse contexto que conheceram a Aliança das Mães e Famílias Raras (AMAR), ONG dedicada à mulheres e cuidadoras de pessoas diagnosticadas com síndromes raras que atua desde 2013. A organização acolhe diversos tipos de doenças raras, como a síndrome de cri-du-chat, a distrofia muscular, e até doenças consideradas “comuns” cujos pacientes sofrem de um processo de marginalização e invisibilização política e social semelhantes, como é o caso das síndromes dentro do espectro do autismo e da síndrome de down.


A instituição promove cursos de profissionalização para mulheres, palestras com responsáveis por serviços jurídicos, além de ofertar grupos de apoio psicológico para as famílias (SCOTT et alli, 2017). Parry Scott e suas colegas antropólogas vinculadas à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que também têm pesquisado esse fenômeno, observam que houve uma intensa movimentação de “mães de micro” procurando pela AMAR no início da epidemia, contabilizando cerca de 200 famílias que chegaram juntas em busca de apoio ao final de 2015, quando as primeiras crianças começaram a nascer. À reboque, vieram os jornalistas, os prefeitos locais, os políticos de alto escalão. Naquele momento de efervescência, a microcefalia funcionou como um grande catalisador para a visibilização da AMAR, bem como de muitas doenças raras que antes passavam desapercebidas do público mais amplo.


Como narra Pollyana Dias, coordenadora da AMAR, o surto descortinou a realidade das pessoas que vivem com síndromes raras e outras deficiências. Apesar de enfatizar o aspecto positivo que o surto teve sobre tais questões no país, Pollyana conta que a atenção conferida à microcefalia produziu alguns atritos dentro da organização. As “mães de micro” ganharam preferência frente ao Estado na elaboração de políticas públicas, além de serem o alvo principal de ajuda e doações de medicamentos, leites especiais, fraldas, colchões, roupas etc. Isso estremeceu um pouco as relações dentro da organização.


Nesse contexto, a 22 de novembro de 2015, foi criada a UMA, União de Mães de Anjos, dedicada exclusivamente à crianças diagnosticadas com a síndrome congênita do Zika. A conotação religiosa do nome da associação permeia a organização como um todo, e é possível enxergar uma clara conotação missionária nas falas de sua coordenadora e também demais participantes. Para a liderança, o objetivo principal da UMA é “levar” a informação e a ajuda até às famílias. Neste sentido, a UMA opera de uma forma bem diferente da AMAR: com a missão de levar conhecimento para as mulheres e crianças afetadas, a UMA tem uma atuação central nas famílias do interior de Pernambuco, espalhando “células” da organização, como são chamadas suas sedes, para o agreste nordestino, ao passo que a atuação da AMAR se concentra na capital. “Célula”, inclusive, é o mesmo termo usado por igrejas pentecostais para os pequenos núcleos de oração e encontro que acontecem na casa dos fiéis. Apesar do esforço em incluir crianças e famílias do interior, a UMA continua trabalhando com uma extensa agenda na capital também.


Apesar das diferenças, ambas as organizações atuam como peças-chave na mediação entre o Estado e as famílias. Foi a partir das demandas da UMA, por exemplo, que o Keppra, remédio anti-convulsionante utilizado por mais de 40% das crianças diagnosticadas com a síndrome, foi inserido dentro da rede do SUS, permitindo o acesso gratuito a essa medicação não só às crianças diagnosticadas com a síndrome, mas também à toda a população que dele precisar (SCOTT et alli, 2017). Além do papel mediador, as duas instituições ainda funcionam como um polo de doações materiais e apoio afetivo para o dia a dia dessas famílias. Dessa maneira, ainda que algumas mulheres tenham preferência por uma instituição em detrimento da outra, não é raro localizar famílias que frequentam as duas instituições: “se alguém reclamar, visto o uniforme da UMA e coloco o do AMAR em meu filho”, disse uma das mães em tom jocoso ao falar sobre as duas organizações. Uma estratégia diplomática que anunciava como transitar e tecer uma rede de “mães de micro”, acima de tudo, era o principal aqui.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SCOTT, Parry. et alli. “A epidemia de Zika e as Articulações das Mães num Campo Tensionado entre Feminismo, Deficiência e Cuidados”. Cadernos de Gênero e Diversidade, volume 3, número 2, maio/agosto de 2017.

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